E quando você voltar
Tranque o portão
Feche as janelas
Apague a luz
E saiba que te amo..'
A gente sempre acha que é especial na vida de alguém, mas o que te garante que você não está somente servindo pra tapar buracos, servindo de curativo pras feridas antigas? Porque amar também é isso, não? Dar o seu melhor pra curar outra pessoa de todos os golpes, até que ela fique bem e te deixe pra trás, fraco e sangrando. Daí você espera por alguém que venha te curar. As vezes esse alguém aparece, outras vezes, não.
Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.
.Paulo Leminski
(…) Tem dias que não estamos pra samba, pra rock, pra hip-hop, e nem por isso devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada temos para brindar. Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria, daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de mais uma dor – até que venha a próxima, normais que somos.
.Martha Medeiros in Doidas e Santas
Ela era toda grande, de mãos e pés e olhos e busto, mas um grande que não se impunha, não feria. Um grande que pousava como quem já vai embora. Ela parecia levantar vôo, no surpreendente de que ao elevar-se não deslocasse o ar em torno nem provocasse ventania. Até mesmo seu coração era grande. Era coração, aquele escondido pedaço de ser onde fica guardado o que se sente e o que se pensa sobre as pessoas das quais se gosta? Devia ser.
.Caio Fernando Abreu
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado”. Caio Fernando Abreu .
— É possível um rio secar completamente?
— Claro que é.
— Mas será que ele não enche depois? Nunca mais?
— Alguns sim, outros não.
— Mas nunca mais?
— Sei lá, acho que não.
— Você tem certeza?
— Certeza eu não tenho. Só estou dizendo que acho. Afinal não sou nenhuma especialista em matéria de rios, secos ou não.
— Sabe?
— O quê?
— Eu tinha esperança que o rio voltasse a encher um dia.”. Caio Fernando Abreu in O Inventário do Ir-remediável .
Todo mundo conhece ciclo seco, a maioria até já passou por ele. Alguns mesmo vivem desde sempre dentro dele, achando que isso é vida e eternizando o que, por ser ciclo, deveria também ser transitório. É preciso acreditar que passa, embora quando dentro dele seja difícil e quase impossível acreditar não só nisso, mas em qualquer outra coisa. Não que ciclo seco não tenha fé, o que acontece é que não podendo ver o que não é visível, fica limitado ao real.
Antes de ir em frente, é importante dizer que ciclo seco nada tem a ver com as estações do ano. É coisa de dentro do humano, não de fora, e justamente por isso não tem nenhum método: vem quando não é esperado e vai quando não se suspeita. Ciclo seco não desaba de repente sobre alguém; chega aos poucos, insidioso, lento. Quando se percebe que se instalou, geralmente é tarde demais. Já está ali. É preciso atravessá-lo como a um deserto, quando se está no meio e a água acabou. Por ser limitado ao real, o ciclo seco jamais considera a possibilidade de um oásis ou de uma caravana passando. Secamente, apenas vai em frente.
Porque o real do ciclo seco são ações, não pensamentos nem imaginações. Tanto que, visto de fora, não é visível nem identificável. Não se confunde com “depressão”, quando você deixa de fazer o que devia, ou com “euforia”, quando você faz em excesso o que não devia. Em ciclo seco faz-se exatamente o que se deve ou não, desde escovar os dentes de manhã ou beber um uísque à tardinha, mas sem prazer. Nem desprazer: em ciclo seco apenas se age, sem adjetivos. A propósito, ciclo seco não admite adjetivos — seco é apenas a maneira inexata de chamá-lo para que, dando-lhe um nome, didaticamente se possa falar nele.
E deve-se falar dele? Quero supor, entusiástico, que sim. Mas não tenho certeza se dar nome aos bois terá alguma serventia para o dono dos bois ou sequer para os próprios bois — e essa é uma reflexão típica de ciclo seco. Mas vamos dizer que sim, caso contrário paro de escrever já. E falando-se dele, diga-se ainda que ciclo seco não é bom nem mau, feio ou bonito, inteligente ou burro (…) embora possa dar uma impressão errada a quem o vê de fora, ávido por adjetivar.
Ciclo seco, por exemplo, não se interessa por nada. Pior que não ter o que dizer, ciclo seco não tem o que ouvir, compreende? Fica na mais completa indiferença seja ao terremoto no Japão ou à demissão de Vera Fischer. No plano pessoal, tanto faz ler ou não ler um livro, ir ou não ao cinema — ciclo seco é incapaz de se distrair, de se evadir. Fica voltado para dentro o tempo todo, atento a quê é um mistério, pois que pode um ciclo seco observar de si mesmo além da própria secura, se não há sequer temporais, ventanias, chuvaradas? Nesse sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e imutável, porque de dentro nada vem que o modifique.
E nesse sentido também é antinatural, pois tudo se transforma e ele não, simulando o eterno em sua digamos, i-na-ba-la-bi-li-da-de. E sendo assim, com alívio vou quase concluindo, pode se deduzir que… Não, não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades. Chatíssimo bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo.
Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante como se se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali para que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu, francamente não sei. Ainda mais francamente, nem sequer sinto muito.
Caio Fernando Abreu in Pequenas Epifanias
Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul – daquela não-dor, afinal”
. Caio Fernando Abreu in Estranhos Estrangeiros .
“Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez,
com outro número e outra vontade
de acreditar que daqui pra frente…
tudo vai ser diferente!”
Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! …Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento …
São assim ocos, rudes, os meus versos:Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!. Florbela Espanca in Livro de Mágoas .